Do diretor Andrey
Zvyagintsev, Leviathan é o filme
russo indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2015.
E não sem razão!
Apenas estou tentando concatenar minhas ideias
para entender por que a academia americana escolheu uma crítica tão voraz ao Estado
pós comunista para concorrer à estatueta, e tem crítico dizendo que já ganhou
porque critica a Rússia (!).
Tenho cá minhas discordâncias, tanto em relação
ao "já ganhou" quanto em relação ao "critica a Rússia".
Leviathan, na verdade, critica o Estado, na acepção
ampla de "Estado Democrático de 'Direitos'"; e, ao fazer tal crítica,
o faz em relação a TODOS os modelos atuais de Estado, e não realizando uma
crítica pontual à própria Rússia, apenas.
Evidentemente que, sendo uma história que se
passa na Rússia, a crítica se dá "a partir da" Rússia, mas não é
difícil compreender que ela se espraia pelo mundo, em relação à noção de Estado
construída, sobretudo, no ocidente.
É o que se vê numa Rússia onde a Igreja tem vez
e voz no aconselhamento do prefeito corrupto de uma cidade, onde se passa a
história, e o padre, ortodoxamente paramentado, explica ao prefeito que todo o
poder vem de deus e que somente a força poderá preservar o poder dado por deus,
portanto, aconselha o padre ao prefeito, não hesite em usar a força para
preservar o poder nos teus domínios.
E o roteiro construído nos dá conta de um homem
que sofre uma desapropriação estatal no lugar onde vive e traz um advogado para
defendê-lo, ocasião em que começa sua derrocada. E, ai, o grande mérito do
filme, que se utiliza de signos o tempo todo para se desenvolver como uma obra
que merece mesmo ser premiada.
A primeira simbologia que se extrai, é a
semelhança do protagonista com o personagem bíblico, Jó, que perdeu tudo o que tinha.

Os 34 versículos do
capítulo 41 do Livro de Jó, nos
oferecem uma apavorante descrição do Leviathan,
um terrível monstro marinho já referido no capítulo 4º:
1.Poderias tu pescar o leviatã com
linha e anzol? Ou atar-lhe a língua com uma corda?
2 Serias tu capaz de o prender com uma corda no
nariz, ou furar-lhe as queixadas com uma escápula?
3 Porventura iria ele pedir-te que desistisses das
tuas intenções e tentar brandamente fazer-te mudar de ideias?
4 Aceitaria alguma vez que fizesses dele teu escravo
para toda a vida?
5 Farias tu dele um animalzinho domesticado,
como um passarinho, que se cria numa gaiola, que darias às tuas
filhinhas para brincarem?
6 Os teus companheiros de pesca vendê-lo-iam
aos comerciantes, na lota?
7 A sua pele, poderia ela ser furada por ganchos,
ou a cabeça presa por arpões?
8 Se lhe pusesses as mãos em cima, durante muito tempo haverias de te
lembrar da luta que se seguiria, e nunca mais o
farias outra vez!
9 Não. É absolutamente inútil tentar capturá-lo.
Até só o pensar nisso aterroriza!
10 Não há ninguém que seja tão ousado, que se atreva
a provocá-lo e muito menos a conquistá-lo. Pois se
ninguém lhe pode resistir, quem poderia então erguer-se contra
mim?
11 Nada recebi de ninguém. Tudo o que
existe debaixo dos céus é meu.
12 Também quero fazer referência à tremenda força dos
seus membros, e à sua enorme estrutura.
13 Quem poderia penetrar a sua pele, ou
quem ousaria ficar ao alcance das suas goelas?
14 Quem jamais lhe abriu o focinho guarnecido
como está de dentes terríveis?
15/17 As escamas sobrepostas que possui são
o seu orgulho, são como uma proteção compacta, de
tal forma que nem o ar lá penetra: nada ultrapassa aquela barreira.
18 Quando espirra, a luz do sol reflete-se sem cintilações,
semelhantes a raios, por entre os vapores da alva.
19 Seus olhos brilham como faíscas. Sai-lhe fogo da boca.
20 O fumo brota das suas narinas, até
parece uma panela fervendo com água, ou uma caldeira aquecida.
21 É verdade, a sua respiração bastaria para acender
carvões — jorram-lhe chamas da boca.
22 A força enorme que tem no pescoço lança o terror
por onde passa.
23 Tem uns músculos duros e firmes; nem se encontra
nele carne flácida.
24 O seu coração é duro como uma rocha, é como uma
mó, de moinho.
25 Quando se ergue, até os mais valentes têm medo,
e ficam paralisados de terror.
26 Não há espada que o detenha, nem qualquer outra
arma, seja lança, dardo ou flecha.
27 Ferro, para ele, é como palha, e o bronze, como
madeira podre.
28 Não são setas que o fariam fugir. Pedras
das fundas valem para ele tanto como estolho.
29 Uma tranca que lhe seja atirada, é perfeitamente
inútil, e fica-se a rir das lanças projetadas na sua direção.
30 ventre, tem-no recoberto de escamas;
espoja-se sobre o chão duro como sobre relva!
31 Quando se desloca deixa atrás de si um rasto de
espuma. Agita violentamente os abismos dos oceanos.
32 Deixa atrás de si um sulco brilhante de espuma;
poderia pensar-se que o mar gelou!
33 Não há nada mais tremendo, sobre a face da terra,
que se lhe possa comparar.
34 De todos os animais, é o mais altivo — é o monarca deles todos.
34 De todos os animais, é o mais altivo — é o monarca deles todos.
Como Jó, Nicolay vai sendo despojado de tudo o que o cerca, mas aqui o grande inimigo é o Estado.
Thomas Hobbes se utilizou do mesmo
símbolo em seu clássico “O Leviatã”,
como analogia ao Poder do Estado autoritário, após a humanidade “assinar” o
contrato social, abrindo mão do “estado de natureza” – caracterizado por um
feroz egoísmo - e se colocando nos braços do Estado, momento em que nasce o
chamado Estado Democrático de Direito.
É
preciso que se compreendam estas duas alegorias, para bem situar-se em toda a
rica simbologia oferecida por Leviathan.
Destaque
para o modo caricato que retrata a misoginia e constante embriaguez dos homens, o tempo
todo. Sim é a Rússia, mas é também uma forma de se anestesiar desse estado
doloroso de coisas postas.
Em
alguns momentos do filme, podemos ver críticas pontuais a muitos políticos
russos, mas continuo afirmando que a Academia em nada se engrandecerá em dar o
Oscar a Leviathan como uma espécie
de revanche infantil. Aliás, o Direito Russo, pode-se ver no filme, é muito mais assemelhado ao brasileiro do que ao americano. Há referência, por exemplo ao Princípio da Presunção de Inocência e ao não valor da confissão como prova - o que inexiste no Direito Americano.
É
a Rússia, mas poderia ser em qualquer outro lugar do mundo ocidental.
E
quem poderá fugir do braço pesado do monstruoso Leviathan quando nos tem na mira como alvo?
(Repito mil vezes: a fotografia é um
espetáculo à parte do filme. Deveria concorrer ao Oscar de Melhor Fotografia
também! E ganharia!)
Confira o trailer:
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