terça-feira, 28 de janeiro de 2014

HER (2014)

Perdoem-me os conceituados críticos de plantão, mas HER é muito mais (mas muito mais mesmo!) do que “um filme de Spike Jonze que cria um relacionamento ‘surpreendentemente possível’ entre homem e máquina”!

Ainda que o personagem Theodore Twombly, interpretado lindamente pelo magistral Joaquin Phoenix, realmente se apaixone por um OS (sistema operacional), cuja bela voz rouca de mulher fora programada em prévia triagem do OS sobre os seus desejos, a questão de ser ou não um software dotado de inteligência artificial é única e tão somente uma parábola.

Do que Spike Jonze (“Quero Ser John Malkovichestá a nos falar ali, na verdade, é sobre o fato de que, amores possíveis ou não, nos apaixonamos e, quando isto acontece, despertamos do perigo de permanecer para sempre adormecidos.

Pena que o filme esteja sendo definido como a história da paixão de um homem pela voz de um sistema operacional... Esqueça a coisa do sistema operacional!

Samantha, a bela voz de Scarlett Johansson pela qual Theodere se enamora e que nasce da instalação de um software em seu smartphone, é, na verdade aquele Outro, para o qual se olha naquele momento em que você tinha certeza de que jamais voltaria a perceber ou se interessar por alguém.

Theodore sofre com o fim de seu casamento e os encontros reais com mulheres de carne e osso não têm sido frutíferos. Nem nos chats em salas de bate-papo o solitário homem consegue se interessar por alguém.

Theodore trabalha numa empresa chamada Cartas de Amor Escritas a Mão ponto com ou algo assim, e tem como profissão escrever belíssimas cartas de amor para as pessoas.

Pela qualidade das cartas que escreve, podemos ver que é dotado de sensibilidade e muita ternura, mas Theodore é uma espécie de Orpheu, que alivia as dores alheias, com suas belas cartas de amor, mas não consegue encontrar remédio para suas próprias dores.

Encontramos o personagem nesse momento difícil, com um trabalho bem inferior ao seu potencial, mergulhado em sofisticados jogos de videogame, cheio de lembranças da esposa, com quem convivera desde muito jovem e se recusando a assinar o divórcio. “Gosto de estar casado”, diz ele a Samantha quando começa a conversar com a inteligência artificial que logo se mostrará uma deliciosa companheira.

Samantha, de início, se mostra de grande utilidade prática, pois consegue acessar rapidamente os e-mails de Theodore e gerenciá-los, apagando o que não tem utilidade, respondendo com perfeição os que devem ser respondidos, ou seja, o relacionamento entre eles nasce do apoio, da ajuda e da admiração que a eficiência dela gera nele.

A capacidade de interação de Samantha, muito mais do que um simples robô sem corpo, vai atraindo para si Theodore e, quando ele se dá conta, já sente necessidade do contato diário com a voz que o compreende e passa a apoiá-lo também em seus assuntos emocionais, percebendo-o em seus tons de voz, sua tristeza, alegria, desânimo... Sua dores...

A curiosidade de Theodore sobre tamanha capacidade de Samantha leva-a informa-lo: "Eu evoluo a cada momento. Eu quero ser tão complicada quanto todas as pessoas".

Samantha desbrava sua própria existência através da interação com Theodore, e, aos poucos, admite seus pensamentos pessoais, inseguranças e ciúmes, questionando se "esses sentimentos são reais ou só programação?".

É a partir da interação entre ambos, que mergulhamos de cabeça na história, ao tempo em que vislumbramos os nossos próprios relacionamentos e passamos a sentir fortemente aquilo que o filme nos desperta: paixão, ternura, poesia e uma infinidade de sentimentos outros, todos ligados ao amor.

No filme há, certamente, algo voltado para os tempos modernos, mas no sentido das relações virtuais (quem nunca?) e não necessariamente da questão da inteligência artificial e do relacionamento com uma máquina.

Evidencia-se o relacionar-se com alguém sem corpo; as maiores angústias de Samantha, inclusive, nascem do não ser corpo e, ainda que haja sexo entre ambos (numa belíssima cena onde ele desperta nela o desejo nunca dantes sentido e ambos se entregam um ao outro), a maior queixa de Samantha é o “não ser corpo”.

Tanto que, a certa altura, Samantha convence Theodore a receber em casa uma mulher que “empresta” o corpo para OSs. É interessante e criativo o expediente, pois Samantha vê através da câmera e gruda-se uma, bem pequena, no rosto da mulher, colocando-se um fone de ouvido em ambos, a mulher e Theodore. Quem Theodore ouve é a voz de Samantha.

Olha o nível da angústia do não poder tocar-se, ser-se, dar-se!

O expediente não funciona; o que para Samantha parece natural, para Theodore é um sacrifício e a mulher, embarcando nas carícias, acaba mexendo os lábios, a certa altura, o que lembra Theodore de que ela não é Samantha e nada chega a acontecer.

Apesar disto, Theodore, satisfeito, confidencia sobre sua relação para a amiga e vizinha: “quando conversamos eu me sinto próximo dela. Eu sinto que ela está comigo. Quando apagamos a luz durante a noite, eu me sinto abraçado.

Por não ter um corpo, Samantha compõe músicas para Theodore ao piano. “Já que nós não podemos tirar fotografia juntos, eu tento compor  melodias que possam expressar nossos momentos juntos”.

Os diálogos são riquíssimos e a voz rouca de Scarlett Johansson é muito mais que uma voz e merecia a criação de um prêmio extraordinário do Oscar este ano: melhor interpretação de voz!

É simplesmente fantástico o que ela consegue fazer com aquela voz sob a batuta de Jonze e, assim como para Theodore, Samantha assume formas corporais em nosso imaginário.

Quando Theodore diz a Samantha que ainda se lembra da esposa e que conversa com ela mentalmente, lembrando-se das brigas que tiveram e das coisas que disseram um ao outro, Samantha responde que compreende o que ele está dizendo, porque se pegou lembrando-se do dia em que ele lhe dissera que ela “não sabia o que era perder alguém.”

Ele começa a lhe pedir desculpas pela mágoa que lhe causara, mas Samantha lhe responde: “está tudo bem! É só que me pego pensando nisso de novo e de novo... E então percebo que estava só lembrando de algo que estava errado comigo; era uma história que contava a mim mesma, de que eu era inferior. Não é interessante? O passado é uma história que nós contamos!”

É bela a sequência em que eles falam sobre a “fantasia do amor” e ela o lembra de que a paixão é um estado de insanidade, “uma forma socialmente aceitável de insanidade”.

O casamento de Theodore terminara, segundo ele, quando o casal começou a mudar e as mudanças aconteceram muito rápido, sem que deixassem de assustá-los um ao outro. O crescimento do outro como fator de temor e assombro.

O relacionamento entre Theodore e Samantha termina pelos mesmos motivos, ainda que guardadas as assombrosas proporções da ultra veloz capacidade cibernética de Samantha.

O começo, meio e fim do relacionamento de Theodore e Samantha não é diferente dos nossos! Por isso, não se iludam que o foco do filme seja o apaixonar-se por uma máquina, ou algo assim!

Não é!

HER é um belo conto de amor humano. A forma como ambos constroem uma relação, a compreensão, o dar-se, o desejar-se a partir do apoio mútuo, o amparo, o cuidado, o crescer...

Crescer que muitas vezes é difícil de ser acompanhado pelo outro e traz em si a necessidade da partida, rumo a novas descobertas, experiências, velocidades, paisagens... Não importa, um sempre estará no outro.

Isso, inclusive, é dito por Samantha mais no início do filme, num diálogo em que ele chega em casa e pergunta a ela o que esteve fazendo.

Samantha diz que estivera lendo Física porque achara interessante o quanto ficou brava quando ele foi se encontrar com Catherine pessoalmente para assinar os papéis do divórcio, por ela ter um corpo. “Eu fiquei chateada por tudo em que somos diferentes. Mas depois comecei a pensar em tudo o que somos iguais. Por exemplo, somos todos feitos de matéria; isto me faz sentir que estamos todos sobre o mesmo cobertor, macio e acolhedor; e tudo abaixo dele tem a mesma idade: temos todos 13 bilhões de anos de idade”.


HER foi considerado o melhor filme pela National Board of ReviewSpike Jonze, também foi reconhecido pelo seu trabalho e levou um prêmio para casa. Além de Phoenix e de  Scarlett Johansson, ainda que só de passagem, Amy Adams  também faz parte do elenco.

Vencedor do Golden Globe de Melhor Roteiro, o filme tem, também, uma trilha sonora linda e pertinente.

São treze músicas instrumentais do Arcade Fire, e o filme recebeu indicações ao Oscar de Melhor Som e de Melhor Canção Original (William Butler e Owen Pallet devem receber o prêmio, por Song on the Beatch).

HER, que teve cinco indicações, também foi indicado aos prêmios de Melhor Filme, Melhor Direção de Arte, Melhor Roteiro Original.

A Academia pecou ao não indicar Joaquin Phoenix ao prêmio de Melhor Ator.

Aqui o álbum completo do Arcade Fire que é a linda trilha sonora de HER pra você se deleitar: https://www.dropbox.com/sh/181q1jbyb4iq8la/Nwz-AcpYQC



3 comentários:

kccavalheiro disse...

Tânia, acabamos de assistir Ela!!! Sai do cinema meio zonza, meio sem entender, confusa mesmo. Os diálogos são tão profundos e brilhantes que de repente você acaba perdendo algo porque ainda tá ruminando algo que passou. Achei o filme excelente. Acho que vale a pena comentar o encontro que Theodore tem com a Olivia Wilde, em princípio parece tudo bem, os 2 se divertiram muito, parece que tiveram um encontro bem satisfatório e quando ela pergunta: você vai me ligar? Quando podemos nos ver novamente? Ele titubeia e não consegue interagir com a moça. Porém, quando chega em casa ele encontra muito mais intimidade com Samantha do que com qualquer outra pessoa. E acaba nos fazendo pensar, o que faz realmente a intimidade? Do que ela é composta? Para quem se deixou levar pelo filme, entendeu que o contato humano não é exatamente essencial, as memórias dos fatos e das sensações são acabam sendo mais ricas que a própria vivência, e não se trata de "inventar" uma experiência, mas de guardar aquilo que vale a pena ser revivido quantas vezes forem necessárias.

Tânia Mandarino disse...

Karyn, querida, nesse sentido, da intimidade, não nos esqueçamos que Samanta foi programada por Theo e, portanto, a intimidade que ele com ela alcança também é fruto dessa precisão, ou seja, ele tinha "contado" pra ela o "jeito que ele gosta" e ai fica mais fácil, né, seja com quem for!
Também vejo ai a relação com o nosso narcisismo e coisa de achar feio o que não é espelho.
A Olivia Wilde tinha um corpo, mas não era espelho... Samantha é um espelho que faz nascer a intimidade como a intimidade que se tem consigo mesmo. Até ai, td. muito humano, nascido do contato com a essência que, de algum modo, se materializa em sensações.
Diálogos incrivelmente ricos, não?
Eu acho que ele para de olhar pro próprio umbigo só dps. que Samantha lhe tira o chão... No meu imaginário, ele começa uma história "de corpo" com a amiga e vizinha.
Adorei a visita e a tua análise!
Um beijão!

kccavalheiro disse...

Não sei Tânia.... O que eu achei genial no filme é que o Theodore é um sujeito absolutamente normal, com a possibilidade de sair com quem ele quiser, ele é um sujeito sociável, tem amigos, tem um trabalho e trocas experiências com o sistema operacional. Seria muito simples para o roteirista pegar um cara esquisitão, meio autista, nerd, etc. mas a opção por fazer do Theo um sujeito absolutamente normal é genial. Por isso que eu pendi para o lado de a presença fisica não é essencial para a intimidade e a imaginação pode dar conta de muita coisa. Claro, não que o sujeito não precise ter nenhuma experiência fora do mundo virtual, na verdade ele precisa de 'algo' para alimentar o virtual. A vizinha me parece mais uma amiga que acaba dando um suporte até emocional em relação a Samantha e acaba mostrando para o Theo (quando ela começa a contar das pessoas que estão usando o mesmo programa) que a situação que ele tá vivendo é real, a ponto dos sistemas operacionais de outras pessoas não se apaixonarem pelo seu 'dono' e acabar interagindo muito melhor com outras pessoas.

beijão